terça-feira, 24 de abril de 2012

A gaiola do vento


A gaiola do vento

Já passavam das 9 horas da manhã quando acordei sobressaltada em meio a um silêncio profundo. Levantei-me e fui até à janela.
A rua estava deserta naquele dia. Não havia ninguém além de mim a espreitar o vazio através da vidraça: nenhum pássaro, nenhum inseto – nem de cá, nem de lá...
O que poderia ter acontecido?
Depressa, coloquei meu vestido branco e as sandálias, desci as escadas e ganhei a rua.
Estava atordoada e queria gritar, mas para quem? E por quê? Seria apenas uma voz naquele oco do abandono.
O silêncio surge nesses momentos em que ficamos diante de nossas inseguranças e incertezas. Esse silêncio não é a ausência de barulho, e sim a presença de algo que nos surpreende e isso assusta e faz calar.
Não vi nenhum automóvel – apenas algumas folhas que o outono esqueceu de levar e que o vento agora se encarregou de espalhá-las, num voo bem rente ao chão no adro da Igreja de São Mamede.
Atravessei o portão que leva ao Jardim Botânico na esperança de encontrar alguém ou alguma coisa familiar. Mas que estranho: nem sequer o porteiro, que sempre me dá um bom dia, estava ali. E os portões permaneciam abertos!
O jardim dá morada ao sol e à sombra, às cores e aos matizes, e ao silêncio: esse perturbador silêncio.
O meu olhar detem-se nas grandes e velhas árvores. Sinto como se as árvores já me conhecessem desde criança e me acolhessem, ouvindo pacientemente minhas angústias e entendendo também o que não consigo dizer com as palavras.
A sombra daquelas árvores disponíveis a qualquer hora aquieta-me. Talvez eu até durma. Apenas dormindo podemos acordar os nossos sonhos (ou pesadelos!) que estavam escondidos entre as batidas do coração – que assiste a tudo com a indiferença de quem está ali apenas a marcar o compasso de uma música já bastante conhecida.
Ainda não aprendi a dançar obedecendo ao ritmo que existe entre as pausas e o movimento.  Ou será que não percebi que esse ritmo é, por vezes, tão incerto e alucinante que a dança poderia dar-me um nó nas pernas?
Levanto-me e volto a caminhar pela parte iluminada do jardim em direcção ao lago - o meu lugar predileto.
O lago é pequeno e mesmo assim contempla e reflete o que acontece no céu. Possibilita também que nos vejamos nele. A água calma e contida parece estar alheia ao que se passa, mas não está... Nós é que percebemos muito pouco além da superfície ou da linha que divide o mundo visível do outro, que desconhecemos.
O lago é o mapa das emoções vividas e a memória do tempo que fatalmente evapora. Nele cabe toda a expressão do prazer e da dor, mas  nem sempre suas águas são transparentes. Às vezes é necessário mergulhar e atravessar o limite do imponderável para vermos um pouco melhor e descobrirmos parte dos mistérios mais profundos.
Em cada canto do jardim há uma beleza peculiar e de difícil descrição. Apenas estando nesses locais é que vemos o que há para se viver.
Mas apenas estar nos locais não é viver. Onde estão as pessoas, meu Deus?
Cheguei a me perguntar mais cedo se não teria ficado surda nessa manhã, mas nem é o silêncio mais que me incomoda – é a solidão repentina que me deixou apavorada e sem motivo para cuidar dos cabelos. Pra quê lembrar dos cabelos nessa ocasião em que só o vento se encarrega de afagá-los?
Tudo em volta parece existir há séculos, talvez milénios. E nem mesmo o tempo, que testemunhou a tudo e conhece bem as verdades, saberia explicar-me agora essa pausa, esse silêncio ensurdecedor, esse vazio, esse medo. O que é o tempo quando nada acontece?
O tempo, o vento, as folhas secas e os meus cabelos despenteados – é o que há e não haveria outra coisa para te contar se eu não me movesse em busca de outra realidade, de lugares diferentes e de pessoas quase iguais – procuro pelas pessoas – principalmente – iguais ou diferentes, tanto faz!
________________________________________________________________
As plantas compõem um grande oceano verde onde as ondas de calor são seguidas de uma corrente fria a me percorrer a alma e a espinha.
Parei aqui no jardim para respirar um pouco e acho que não estou pronta para retornar às ruas. Vou me encaminhar lá pra baixo.
O que aconteceu nessa cidade? O que se passou enquanto eu dormia? Acho que sumiram até as gaiolas com os pássaros e tudo o mais...
Ontem foi um dia normal. Com todas as confusões dos dias normais – o que também é normalíssimo, diga-se de passagem.
________________________________________________________________
Ando devagar e a esmo há mais de uma hora, desde quando subia a rua de São Bento, passando pelo largo do Rato e pela rua da Escola Politécnica, como já contei.
Sigo em direção ao observatório astronómico. O observatório fica no caminho da escadaria que dá acesso à parte baixa do jardim, depois que se atravessa a classe.
Encontrei no chão uma pena – isso é um bom sinal! Caída também estava uma outra, e mais uma, logo à frente. Vou seguir essa trilha para ver onde ela me levará.
E numa clareira lá embaixo, onde antigamente havia um grande lago, avisto uma pequena multidão!
As pessoas estavam vestidas de preto e de costas para mim, que estou de branco. Parecem assistir a um espetáculo com a atenção concentrada e no mais absoluto silêncio da expectativa.
Me aproximei devagar. Fui me infiltrando e esbarrando nas pessoas deliberadamente só para perceber se estavam realmente vivas – elas respiravam!
Eu é que estava com a respiração ofegante e por vezes suspensa.
Ao centro estavam dispostas em círculo algumas gaiolas abertas para o lado de fora. Os pássaros assustados com a audiência, desaprenderam suas cantigas. E o voo? Será que ainda saberiam voar?
Cheguei mais perto deles e, como por um encanto, saíram finalmente de suas gaiolas e tomaram o seu destino.
Imediatamente, todos olhamos para cima... e suspiramos aliviados.
E, como parte de um mesmo bando, o vento e as aves circularam livremente por entre as árvores em rumo ao infinito, como se todo o céu de Lisboa lhes pertencesse.



Rosa Maria Alves Pereira
Lisboa, Março de 2010.

Sem comentários:

Enviar um comentário